Concessionária não poderá suspender energia de consumidora com diabetes
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a instituição financeira responde pelo vazamento de dados pessoais sigilosos do consumidor, relativos a operações e serviços bancários, obtidos por criminosos para a prática de fraudes como o "golpe do boleto". Nesse tipo de estelionato, golpistas se passam por funcionários de um banco e emitem boleto falso para receberem indevidamente o pagamento feito pelo cliente.
O colegiado reformou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e restabeleceu a sentença que condenou um banco a declarar válido o pagamento realizado por meio de boleto fraudado e devolver à cliente parcelas pagas indevidamente em contrato de financiamento.
De acordo com o processo, a cliente encaminhou e-mail para o banco solicitando informações sobre como quitar a operação. Dias depois, ela foi contatada pelo WhatsApp por uma suposta funcionária da instituição e recebeu um boleto no valor de cerca de R$ 19 mil. A cliente pagou o boleto, mas depois descobriu que o documento havia sido emitido por criminosos.
Para o TJSP, o golpe contra a cliente foi aplicado por meio de negociações realizadas de maneira informal. O tribunal também considerou que as informações do boleto falso divergiam dos dados constantes do contrato de financiamento e que a consumidora falhou em seu dever de segurança e cautela.
A ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso da cliente, explicou que, nos termos da tese fixada no julgamento do Tema Repetitivo 466 – que contribuiu para a edição da Súmula 479 do STJ –, as instituições bancárias respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno em caso de fraudes praticadas por terceiros, tendo em vista que a responsabilidade decorre do risco da atividade.
Em relação aos chamados golpes de engenharia social, a relatora comentou que os criminosos costumam conhecer os dados pessoais das vítimas e, com base neles, usam técnicas psicológicas de persuasão – a exemplo da simulação de um atendimento bancário verdadeiro – como forma de atingir seu objetivo ilícito.
"Assim, para imputar a responsabilidade às instituições financeiras, no que tange ao vazamento de dados pessoais que culminaram na facilitação de estelionato, deve-se garantir que a origem do indevido tratamento seja o sistema bancário. Os nexos de causalidade e imputação, portanto, dependem da hipótese concretamente analisada", ponderou a ministra.
Nesse cenário, a ministra apontou que não poderia ser imputada ao banco a responsabilidade exclusiva no caso de vazamento de dados cadastrais básicos, como nome e CPF, porque essas informações podem ser obtidas por fontes alternativas. Por outro lado, caso os dados do consumidor sejam vinculados a operações e serviços bancários, a instituição tem o dever de armazenamento e proteção, sob pena de eventual vazamento configurar falha na prestação do serviço.
Nancy Andrighi destacou que, nos termos do artigo 44 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), o tratamento de dados será irregular quando não fornecer a segurança que o titular espera, considerando-se o resultado e os riscos desse tratamento.
No caso analisado, a ministra reforçou que, segundo as informações dos autos, os criminosos detinham dados pessoais da cliente referentes às suas operações bancárias. A relatora também apontou que, embora o boleto falso tivesse diferenças em relação aos documentos verdadeiros, não se espera que uma pessoa comum seja sempre capaz de identificá-las.
Segundo a relatora, algumas circunstâncias pesam a favor da responsabilização do banco: o estelionatário tinha conhecimento de que a vítima era cliente da instituição financeira, sabia que ela encaminhou e-mail com a finalidade de quitar sua dívida e também possuía dados relativos ao financiamento. Essas informações, sobretudo os dados pessoais bancários, são sigilosas, e seu tratamento incumbe à entidade bancária com exclusividade, concluiu a ministra ao restabelecer a sentença.
Fonte - STJ
A presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministra Maria Thereza de Assis Moura, não conheceu do recurso especial em que o Clube de Regatas do Flamengo buscava assegurar o ressarcimento da União por supostas perdas de receita decorrentes da meia entrada nos estádios de futebol – direito previsto para estudantes, idosos, pessoas com deficiência e jovens carentes pelo Estatuto da Pessoa Idosa e pela Lei 12.933/2013.
Segundo a ministra, o clube não apresentou argumentos válidos para justificar a tramitação do recurso no STJ.
Em síntese, o Flamengo queria que fosse declarado pela Justiça que a União tem o dever de suportar, total ou parcialmente, o custo da meia entrada instituída por leis federais, e que o clube tem o direito de ser indenizado pela perda de receita verificada desde cinco anos antes do início do processo até a decisão judicial definitiva.
O recurso especial pretendia reformar a decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) que manteve a sentença contrária aos interesses do Flamengo. Ao analisar o pedido para que o recurso fosse admitido e pudesse tramitar no STJ, Maria Thereza de Assis Moura rejeitou as teses sustentadas pelo clube.
A primeira delas alegou que o TRF2 não fundamentou devidamente sua decisão, pois se reportou aos argumentos da sentença, que por sua vez fazia referência a decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) não juntadas ao processo.
De acordo com a presidente do STJ, o Flamengo, nesse ponto, indicou como violado um dispositivo inexistente no Código de Processo Civil (CPC), atraindo a incidência da Súmula 284/STF, aplicada por analogia, segundo a qual o recurso é inadmissível quando a deficiência em sua fundamentação não permite a exata compreensão da controvérsia.
"Ademais, não houve o prequestionamento da tese recursal, uma vez que a questão postulada não foi examinada pela corte de origem sob o viés pretendido pela parte recorrente", destacou a ministra.
Para o Flamengo, a decisão das instâncias ordinárias também deveria ser revista porque não levou em conta o balanço financeiro nem o laudo contábil que comprovariam o prejuízo causado pela meia entrada e afastariam a suspeita de que esse prejuízo poderia ter sido compensado com o aumento do valor dos ingressos. O clube também alegou cerceamento de defesa, devido ao indeferimento de provas que pretendia apresentar.
Em sua decisão, Maria Thereza de Assis Moura apontou vários impedimentos processuais ao conhecimento do recurso do clube, como a falta de indicação precisa de dispositivos legais que teriam sido violados pelo TRF2, a ausência de discussão prévia sobre a questão levantada no recurso e a necessidade de reexame de provas para desconstituir a decisão de segundo grau – que não é admitida pela Súmula 7 do STJ.
A ministra afirmou ainda que o acórdão do TRF2 se apoiou em fundamento de natureza constitucional sobre a independência dos poderes, o qual, por si só, seria suficiente para manter a decisão. No entendimento da corte regional, o Judiciário não pode atuar como legislador para superar supostas omissões e falhas das leis que concedem a meia entrada.
"Esse fundamento constitucional, autônomo e suficiente para manutenção do acórdão recorrido, não foi impugnado nas razões de interposição do recurso extraordinário", concluiu a ministra, ao aplicar a Súmula 126 do STJ.
Ela lembrou que, nessas hipóteses, é ônus da parte interpor tanto o recurso especial, para discutir questões infraconstitucionais, quanto o extraordinário, impugnando todos os fundamentos de natureza constitucional, o que não foi feito no caso, pois a razão de decidir relativa ao princípio da separação de poderes não foi atacada nas razões do recurso dirigido ao STF.
Fonte - STJ
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que a intimação do devedor fiduciante sobre a data de realização do leilão extrajudicial do imóvel objeto de alienação fiduciária somente passou a ser obrigatória a partir da entrada em vigor da Lei 13.465/2017. Isso porque, no momento do leilão, o bem já não pertence mais ao devedor.
"A partir da Lei 13.465/2017, tornou-se necessária a intimação do devedor fiduciante da data do leilão, devido à expressa determinação legal, passando também a ser assegurado ao devedor fiduciante, até a data da realização do segundo leilão, o direito de preferência para adquirir o imóvel por preço correspondente ao valor da dívida", afirmou a relatora, ministra Isabel Gallotti.
No mesmo julgamento, a Quarta Turma considerou que, se uma pessoa jurídica é a devedora e se nega a receber a intimação para quitar a dívida em seu endereço comercial, informando falsamente ao correio que teria se mudado, não há impedimento a que o cartório de registro de imóveis a intime por edital.
No caso analisado pela turma julgadora, o cartório expediu cinco cartas com aviso de recebimento para o endereço indicado no contrato de alienação fiduciária, todas devolvidas com a informação de que as duas empresas devedoras teriam se mudado. Posteriormente, houve tentativa de intimação dos sócios, também sem sucesso. O cartório, então, fez a intimação por edital.
Pela via judicial, as devedoras buscaram a anulação do leilão, mas o pedido foi julgado improcedente em primeira e segunda instâncias.
Por meio de recurso especial, as empresas alegaram que, em caso de insucesso da intimação pelo correio, não há autorização automática para que seja feita por edital, o que só poderia ocorrer após o esgotamento de todos os meios possíveis de intimação pessoal. Elas também sustentaram que, nos termos da Lei 9.514/1997, seria necessária a intimação pessoal do devedor sobre a data da realização do leilão, tendo em vista que, até a arrematação, ainda seria possível quitar o débito.
Segundo a ministra Gallotti, o artigo 26, parágrafo 4º, da Lei 9.514/1997 autoriza expressamente que, após sucessivas tentativas fracassadas de intimação pessoal, haja a intimação por edital, caso o devedor fiduciante esteja em local ignorado, incerto ou inacessível.
Em consulta à internet, porém, verificou-se que o endereço das empresas continuava aquele informado no contrato. "Constatado que as recorrentes se esquivaram, por diversas vezes, de receber as intimações para purgar a mora em seu endereço comercial, conforme expressamente indicado no contrato de alienação fiduciária, induzindo os correios em erro ao indicar possível mudança de domicílio que nunca existiu, não há óbice à intimação por edital", declarou.
Em relação à necessidade de intimação do devedor acerca da data do leilão, a ministra apontou que esse requisito só passou a existir com a entrada em vigor da Lei 13.465/2017, a qual incluiu parágrafos no artigo 27 da Lei 9.514/1997, que regula a alienação fiduciária de imóvel.
"Até então, a lei de regência não impunha essa obrigatoriedade de intimação da data do leilão, e essa falta de previsão não se deu, ao contrário do que possa parecer, por falha do legislador, mas sim porque, em se tratando de contrato de alienação fiduciária, caso o devedor não se manifeste após ser intimado para purgar a mora, a propriedade se consolida, automaticamente, em nome do credor fiduciário, conforme previsto no artigo 26 da Lei 9.514/1997", explicou.
Isabel Gallotti reconheceu que a Terceira Turma do STJ tem precedentes (REsp 1.447.687 e outros) no sentido de considerar necessária a intimação do devedor fiduciante, mas, segundo ela, tal entendimento decorre de interpretação jurisprudencial sobre os dispositivos do Decreto-Lei 70/1966 que regem a execução extrajudicial de dívida hipotecária, situação em que o imóvel é levado a leilão antes da transferência de sua propriedade.
De acordo com a ministra, esse entendimento deve ser revisto ao menos para a fixação de um marco temporal a partir do qual a intimação do devedor fiduciante passou a ser exigida. No caso dos autos, a relatora concluiu que, como a execução extrajudicial é anterior à data de entrada em vigor da Lei 13.645/2017, a falta de intimação dos devedores sobre a realização do leilão não gerou nulidade.
Leia o acórdão no REsp 1.733.777.
Fonte -STJ
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a validade de uma citação por edital ao considerar que a prévia expedição de ofício às concessionárias de serviços públicos, para fins de localização do réu, não é uma medida obrigatória. Com essa posição, o colegiado negou provimento a um recurso especial que pretendia anular todos os atos do processo a partir de alegado vício na citação.
Na origem do caso, a recorrente questionou a ação de execução de título extrajudicial movida por uma empresa de serviços fotográficos. Após a rejeição dos embargos à execução, ela apelou ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), alegando nulidade da citação por edital. Para a parte executada, antes de determinar a citação por esse meio, o juízo deveria ter esgotado as possibilidades de localizá-la, inclusive – obrigatoriamente – requisitando informações cadastrais das concessionárias de serviços públicos.
A corte local negou provimento à apelação, afirmando que a citação por edital não pressupõe a expedição de ofícios às concessionárias de serviços públicos, sobretudo se já houve a busca pelo endereço da parte ré nos sistemas informatizados à disposição do juízo.
A recorrente interpôs recurso especial, no qual apontou violação do artigo 256, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil (CPC), que trata da citação por edital no caso de réu com paradeiro desconhecido.
O relator no STJ, ministro Marco Aurélio Bellizze, destacou que a citação por edital é um ato excepcional, sendo admitida somente nas hipóteses previstas no CPC, ou seja, quando desconhecido ou incerto o citando; quando ignorado, incerto ou inacessível o lugar em que se encontrar o citando; e nos demais casos expressos em lei.
De acordo com o ministro, cabe ao juízo buscar todos os meios possíveis de localização do réu para proceder à sua citação pessoal, podendo requisitar informações sobre seu endereço nos cadastros de órgãos públicos ou de concessionárias de serviços públicos antes de determinar a citação por edital.
"No entanto, a requisição de informações às concessionárias de serviços públicos consiste em uma alternativa dada ao juízo, e não uma imposição legal", explicou o relator, acrescentando que a verificação do esgotamento das possibilidades de localização do réu, a fim de viabilizar a citação por edital, deve levar em conta as particularidades de cada caso.
Ao analisar o acórdão do TJDFT, Bellizze observou que foram feitas sete diligências em endereços distintos antes do deferimento da citação por edital, além de consultas em sistemas informatizados que acessam cadastros de órgãos públicos.
"Embora não tenha havido requisição de informações às concessionárias de serviços públicos, houve a pesquisa de endereços nos cadastros de órgãos públicos, por meio dos sistemas informatizados à disposição do juízo (Bacenjud, Renajud, Infojud e Siel), como determina o parágrafo 3º do artigo 256 do CPC, não havendo que se falar, portanto, em nulidade da citação por edital", concluiu o ministro.
Leia o acórdão no REsp 1.971.968.
Fonte -STJ
A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou legítimo o aumento da pena-base no crime de lesão corporal cometido por praticante de artes marciais. Para o colegiado, os princípios éticos das modalidades esportivas de luta preveem a utilização da violência apenas em situações extremas, de modo que o delito com uso da força, nesses casos, configura maior reprovação da conduta.
O entendimento foi estabelecido em caso no qual o réu, em uma casa noturna, desferiu um soco no rosto da vítima, causando-lhe debilidade permanente no lábio inferior e deformidade definitiva da face.
Em primeiro grau, no momento de fixar a pena-base pelo crime de lesão corporal, o juízo levou em consideração o fato de o réu ser praticante de jiu-jítsu e valorou negativamente a circunstância judicial da culpabilidade. A pena final, fixada em três anos e quatro meses de reclusão, em regime semiaberto, foi mantida pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC).
No STJ, o relator, desembargador convocado Olindo Menezes, reduziu a pena para dois anos e sete meses de reclusão e manteve o semiaberto, mas a defesa, por meio de agravo regimental, insistiu na tese de que a valoração negativa da culpabilidade teria violado o artigo 59 do Código Penal.
Em seu voto no julgamento do agravo, o desembargador Jesuíno Rissato – que assumiu a relatoria do processo – transcreveu precedente do STJ segundo o qual a culpabilidade deve ser entendida como o juízo de reprovabilidade sobre a conduta do agente, apontando maior ou menor censura de seu comportamento.
Reafirmando os termos da decisão do relator original, o desembargador assinalou que o fato de o réu ser praticante de artes marciais, cujos princípios éticos vedam o uso da violência salvo em casos extremos, "justifica validamente a exasperação da pena-base, porquanto evidencia maior reprovabilidade da conduta".
Com esse entendimento, a Sexta Turma manteve a pena fixada na decisão monocrática, inclusive o regime semiaberto.
Leia o acórdão no AREsp 2.053.119.
Fonte -STJ
Irregularidade na compra de ambulância.
A 6ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve decisão da Vara da Fazenda Pública de Presidente Prudente, proferida pelo juiz Darci Lopes Beraldo, que condenou ex-prefeito e servidora do município de Anhumas por improbidade administrativa. Os réus foram sentenciados à perda do valor acrescido ilicitamente ao patrimônio (R$ 71,4 mil); perda da função pública; suspensão dos direitos políticos por 14 anos; pagamento de multa civil equivalente ao valor do acréscimo patrimonial; e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, pelo prazo de 14 anos.
Consta nos autos que, em 2016, o município realizou pregão para contratação de empresa para fornecimento de ambulância. Concluída a licitação e assinado o contrato, o pagamento foi realizado em duas parcelas, mas apenas uma foi registrada contabilmente, o que gerou um saldo devedor fictício. Posteriormente, simulando o pagamento da parte restante, os acusados desviaram o dinheiro.
“Não pairam quaisquer dúvidas quanto à prática do ato ilegal narrado pelo autor, posto que ficou comprovada a manobra contábil para simular a existência de crédito fictício em favor de terceiro, o que possibilitou que os réus efetuassem pagamentos em duplicidade, desviando o dinheiro público para benefício próprio”, escreveu a relatora do recurso, desembargadora Silvia Meirelles.
Na decisão, a magistrada também ressaltou que os acusados agiram dessa forma mais de uma vez, sendo condenados em outra ação de improbidade administrativa. “Os réus, em várias ocasiões, utilizaram-se do mesmo modus operandi para desviar dinheiro público, enriquecendo-se ilicitamente e, por consequência, causaram prejuízo ao erário”, destacou.
Participaram do julgamento os desembargadores Evaristo dos Santos e Sidney Romano dos Reis. A votação foi unânime.
Apelação nº 1006019-82.2021.8.26.0482
Comunicação Social TJSP - BC (texto) / Internet (foto)
Cidadania. Uma palavra tão utilizada, tão comentada e nem sempre
compreendida em sua acepção plena. Tomando um conceito mais restrito,
ela estaria relacionada especificamente a deveres e direitos políticos,
como votar e ser votado. Em seu sentido mais amplo e moderno, contudo, a
cidadania passa a representar toda a gama de direitos do indivíduo
perante o Estado, e a capacidade de cada pessoa de exercê-los e
defendê-los: é, no fundo, o direito a ter direitos.
Uma
palavra, vários significados. Compreender a cidadania envolve conhecer
não apenas os direitos e o modo de exercitá-los, mas de onde eles
surgiram e para onde podem nos levar. Entender a cidadania, assim, é
conhecer as suas diferentes expressões, os seus distintos lados, como em
um polígono de sentidos: são elas, múltiplas e conectadas, as faces da
cidadania.
A história da cidadania no Brasil tem como ponto alto a Constituição de 1988, que a reconheceu como fundamento da República, além de inaugurar e sistematizar um vasto conjunto de direitos – não por outra razão, foi chamada Constituição Cidadã. Entre as suas principais inovações, ela criou um tribunal superior que, por sua origem e suas atribuições, recebeu o apelido de Tribunal da Cidadania: nascia, também em 1988, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que viria a ser instalado em 7 de abril de 1989.
"Nos últimos 35 anos, o STJ, nosso Tribunal da Cidadania, transformou a sua alcunha em verdadeira vocação ao contribuir para dar efetividade aos direitos inaugurados ou ampliados pela Constituição de 1988. Por meio de precedentes históricos, o STJ deu concretude a diferentes direitos em temas como educação, meio ambiente e relações de consumo – todos relacionados à plenitude de existência e à dignidade para cidadãs e cidadãos", resume a presidente do STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Ao longo dos próximos meses, a série especial Faces da Cidadania, produzida pela Secretaria de Comunicação Social do STJ, vai mostrar como esses direitos surgiram na Constituição e como têm sido interpretados pelo Tribunal da Cidadania nos últimos 35 anos. Nesta primeira matéria, a cidadania é explicada por quem a estuda e por quem conhece de perto os desafios de seu exercício.
Segundo o desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e especialista em direito constitucional Ingo Sarlet, o reconhecimento de direitos na Constituição de 1988 tem relação não só com o contexto de ruptura com o regime militar, mas igualmente com a ampla participação social no processo de edição da nova Carta Magna. Como exemplo, o jurista cita as 122 emendas populares apresentadas no processo legislativo constitucional, que reuniram mais de 12 milhões de assinaturas.
"A assim chamada Constituição Cidadã consiste em texto constitucional sem precedentes na história do Brasil, seja quanto a sua amplitude, seja no que diz com o seu conteúdo, não sendo desapropriado afirmar que se trata também de um contributo brasileiro para o constitucionalismo mundial", define.
Adicionalmente, a partir do fortalecimento, pela CF/88, do Poder Judiciário e da garantia de amplo acesso à Justiça, o professor comenta que a jurisprudência brasileira foi responsável pela confirmação de vários outros direitos. Com a contribuição do STJ, destaca Sarlet, foram garantidos os sigilos fiscal e bancário e o direito à ressocialização dos presos, à origem de identidade genética, à identidade sexual e ao mínimo existencial.
Para Ingo Sarlet, a cidadania também foi influenciada pela incorporação de tratados internacionais de direitos humanos. Entre eles, o professor destaca a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência, o Tratado de Marraqueche para o acesso de cegos a obras publicadas e a Convenção Interamericana contra toda forma de discriminação e intolerância – os três últimos aprovados pelo Congresso Nacional com status de emenda constitucional.
No campo infraconstitucional, o jurista considera diretamente ligadas ao exercício da cidadania normas como a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei de Acesso à Informação e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, surgidas depois de 1988. No tocante à proteção de minorias e grupos vulneráveis, Sarlet cita, ainda, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto da Pessoa Idosa, o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
É exatamente na interpretação da lei federal infraconstitucional que o STJ forjou suas principais contribuições para a cidadania, considerada como efetiva fruição dos direitos políticos e civis, sociais, culturais, econômicos e ambientais.
No campo do direito privado, Sarlet cita como exemplos a Súmula 297 do tribunal, segundo a qual o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras, e a Súmula 364, que estendeu a impenhorabilidade do bem de família aos imóveis de pessoas solteiras, separadas e viúvas.
Em relação ao direito ambiental, o jurista lembra o entendimento da corte sobre o poluidor indireto e o ineditismo da definição, pelo STJ, da natureza objetiva da responsabilidade civil ambiental. Sarlet ainda enfatiza precedentes no âmbito do direito penal que estabeleceram proteções à pessoa diante da atuação do sistema de segurança pública, como a garantia à justa persecução penal e a necessidade de prova do consentimento do morador, em algumas situações, para o ingresso policial em domicílio sem mandado judicial.
Esses e outros precedentes históricos do STJ serão detalhados ao longo da série Faces da Cidadania.
Se a cidadania tem várias faces, várias também são as faces daqueles que a exercem. Para cada rosto, cada história, há um sentimento em relação à cidadania, uma visão diferente e particular sobre os desafios para o seu exercício e sobre o que esperar dela no futuro.
Longe
de esgotar essa diversidade, três pessoas conversaram com o STJ a
respeito das suas perspectivas em relação à cidadania e, nesses relatos,
compartilharam experiências que ajudam a compreender a dimensão da luta
pela efetivação de direitos.
No
caso da advogada Patrícia Guimarães, o sentimento de cidadania tem
relação íntima com sua origem, sua cor e sua luta: mulher negra,
Patrícia é descendente de quilombolas – seu pai nasceu e foi criado na
comunidade Kalunga, em Monte Alegre (GO), assim como os seus ancestrais –
e vê na periferia o principal exemplo dos desafios para que o Brasil
seja, de fato, um país com pleno exercício da cidadania.
Vice-presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB do Distrito Federal, a advogada coloca a mulher negra na base da pirâmide social: ela é maioria, afirma, mas também é aquela que sofre a maior gama de preconceitos. Além de não ter acesso digno à educação, à saúde e ao mercado de trabalho, Patrícia lembra que essa mulher – em geral, periférica – ainda é alvo preferencial de discriminação e de violência doméstica.
"Dificilmente você verá uma mulher negra em um cargo de poder. Vemos muitas meninas negras até o ensino fundamental, mas ainda há muitas dificuldades no acesso de mulheres negras, por exemplo, a uma universidade – em especial, às instituições particulares", ressalta.
Mesmo superando alguns desses desafios e tendo qualificação profissional como advogada, Patrícia Guimarães comenta que é alvo de preconceitos em sua atividade: antes de inaugurar o seu próprio escritório, ela chegou a ser preterida em entrevistas de emprego em razão da cor; nos atendimentos a potenciais clientes, já foi rejeitada pelo simples fato de que as pessoas buscavam uma advogada, mas não uma mulher negra.
"Isso aconteceu diversas vezes. A pessoa conversa comigo por telefone, se interessa pelo meu trabalho e, quando vai ao escritório e conhece uma mulher preta, se decepciona. Hoje, essa situação não assusta, mas é uma coisa que ainda dói", resume.
Além de sua atuação voltada para a defesa dos direitos das pessoas mais pobres – a cidadania que mora nas periferias –, a advogada deve inaugurar um instituto específico para o apoio à mulher negra periférica, preparando-a, em especial, para o mercado de trabalho. "A intenção é que consigamos alavancar a vida das mulheres negras, porque nós sabemos que ela é a base da pirâmide, mas raramente consegue chegar no topo – muitas vezes, ela não chega nem no meio da pirâmide", afirma.
Para o bancário Oldemar Barbosa, a luta pelo pleno exercício da cidadania começou aos 11 meses de idade, quando recebeu o diagnóstico de poliomielite. Criado na zona rural de Toledo (PR), ele não recebeu a vacina contra a doença e, em consequência da pólio, ficou paraplégico, necessitando permanentemente de cadeira de rodas.
Apesar
das dificuldades para conseguir reabilitação motora e concluir os
estudos, Oldemar se formou em ciências econômicas e, após passar em
concurso público do Banco do Brasil, mudou-se para Brasília, onde
começou a participar da Associação de Pais, Amigos e Pessoas com
Deficiência, de Funcionários do Banco do Brasil e da Comunidade (Apabb).
Por meio da Apabb, o bancário e outros voluntários auxiliam as pessoas
com deficiência – e suas famílias – para que tenham mais autonomia nas
atividades diárias.
Para Oldemar, a
cidadania reside no direito ao voto, na fiscalização do governo, mas
também na garantia de vagas de estacionamento às pessoas com
deficiência, na construção e na preservação de rampas de acesso, na
modificação arquitetônica de espaços para que indivíduos com condições
especiais possam transitar livremente.
Sobre as dificuldades de garantir a cidadania em todos os níveis, o bancário lembra um episódio: certa vez, alugou apartamento em um prédio que possuía vagas de garagem destinadas a pessoas com deficiência, mas uma delas foi indevidamente vinculada a imóvel cujo comprador não tinha nenhuma necessidade especial. Para resolver a situação, o bancário precisou recorrer ao Procon e à administração regional.
Na visão de Oldemar Barbosa, a efetivação da cidadania passa pela conscientização da sociedade de que os direitos garantidos às pessoas com deficiência não são benefícios injustificados, mas se destinam a atender de maneira diferente indivíduos com necessidades diferentes – tudo para que, no fim, as pessoas possam ser um pouco mais iguais.
"Se você tem uma vaga especial para a pessoa com deficiência, por exemplo, é porque essa pessoa precisa de um espaço específico para movimentar a sua cadeira de rodas, para abrir a porta do carro de forma mais ampla e conseguir se locomover sem dificuldades. Precisamos de banheiros diferenciados porque é necessário se apoiar nas barras e fazer a movimentação da cadeira naquele espaço", aponta o bancário.
A vivência do professor aposentado Vicente Faleiros com o tema cidadania não vem do mero decurso de seus 82 anos, mas das sucessivas experiências com o exercício de direitos – ou com a limitação deles – ao longo da vida. Sob o regime militar, por exemplo, a prisão política e o exílio lhe permitiram compreender que a principal ameaça à cidadania é a violência, em todas as suas formas – seja por intolerância, seja por arbitrariedade do Estado.
Doutor em
sociologia e professor universitário, Faleiros se aprimorou em estudos
relacionados à pessoa idosa, com pesquisas que evidenciaram a
negligência social com esse grupo. Tornou-se pesquisador do tema e
fundador do Fórum Distrital dos Direitos da Pessoa Idosa e integrante da
Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, na qual coordena uma
comissão para elaboração de políticas públicas.
Na
opinião de Vicente Faleiros, cidadania envolve uma rede de proteção
para o exercício de direitos e a primazia da inclusão social, mas a
situação vivida diariamente pelas pessoas mais velhas é diametralmente
oposta: muitas vezes, afirma, elas sofrem do idadismo – o preconceito em
relação à idade –, são consideradas "um peso para a sociedade", recebem
discriminação até pelo andar mais lento, além de serem vistas como
incapazes, improdutivas, feias. Excluídas do convívio social, diz
Faleiros, são excluídas da própria cidadania.
Segundo o professor aposentado, ser uma pessoa idosa cidadã é ter garantidos os direitos humanos fundamentais e, ao mesmo tempo, os direitos específicos desse grupo. É, para ele, a transmutação da ótica da compaixão em ótica da cidadania.
Para ele, a efetivação da cidadania depende da luta contra a desigualdade, a intolerância, a violência e a exclusão social, e, do mesmo modo, do fortalecimento do Estado Democrático de Direito e do pleno exercício da justiça. "Todos que querem viver muito precisam ficar velhos ou velhas. Por isso, é necessário ter uma sociedade inclusiva para crianças, jovens, adultos e pessoas idosas, de diferentes condições", diz o professor. Fonte - STJ