Abuso do direito de ação: o reconhecimento de limites no acesso à Justiça
O amplo acesso à Justiça é um direito fundamental cristalizado no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
Mas, como qualquer outro direito, o acesso à Justiça também encontra as
suas limitações no ordenamento jurídico e deve ser exercido com
responsabilidade.
O abuso do direito
de ação é caracterizado pela utilização exagerada ou desvirtuada desse
direito, com o objetivo de prolongar, atrasar ou impedir o andamento de
processos. Há ainda os que ajuízam ações com conflitos forjados ou
fictícios, pretendendo obter alguma vantagem de forma ilegítima.
O
STJ já analisou diversos casos sobre abuso do direito de ação e definiu
as possibilidades de reconhecimento dessa situação excepcional ao amplo
acesso à Justiça, inclusive do chamado assédio processual.
Ajuizamento de sucessivas ações pode configurar assédio
Entrar na Justiça com sucessivas ações desprovidas de fundamentação idônea, intentadas com propósito doloso
e abusivo, pode configurar ato ilícito de abuso do direito de ação ou
de defesa e levar ao reconhecimento do assédio processual. O
entendimento foi adotado pela Terceira Turma, por maioria, ao dar
parcial provimento ao REsp 1.817.845.
Duas
famílias disputavam uma área de mais de 1.500 hectares de uma fazenda.
Foram propostas diversas ações – entre elas, uma ação divisória, em 1988
– e interpostos diferentes tipos de recursos. Em 1995, foi proferida a sentença na primeira fase da ação divisória, em que se determinou a divisão do imóvel entre as famílias.
Às
vésperas da restituição da área que cabia aos autores da ação
divisória, a outra família ajuizou sucessivamente, entre setembro e
novembro de 2011, uma série de novas ações, todas sem qualquer
fundamento relevante, manejadas quando já estava consolidada, há mais de
16 anos, a propriedade da outra parte.
No
voto que prevaleceu no julgamento, a ministra Nancy Andrighi apontou
que tal atitude configurou abuso de direito, uma vez que, conforme o artigo 187 do Código Civil,
comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes.
"O
abuso do direito fundamental de acesso à Justiça em que incorreram os
recorridos não se materializou em cada um dos atos processuais
individualmente considerados, mas, ao revés, concretizou-se em uma série
de atos concertados, em sucessivas pretensões desprovidas de
fundamentação e em quase uma dezena de demandas frívolas e temerárias,
razão pela qual é o conjunto dessa obra verdadeiramente mal-acabada que
configura o dever de indenizar", concluiu.
Reiteração de medidas processuais descabidas autoriza trânsito em julgado
Com apoio em precedentes, em 2021, a Primeira Seção determinou a certificação imediata do trânsito em julgado na Rcl 41.549, por reconhecer abuso do direito de ação na insistência da parte em apresentar medidas descabidas.
No
caso, uma mulher ajuizou ação buscando receber a pensão especial
deixada por ex-combatente, sob o argumento de que esta poderia ser
requerida a qualquer tempo, não sendo aplicável a prescrição de fundo de direito. Com o objetivo de reverter o acórdão
do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) que negou sua
pretensão, a mulher impetrou vários recursos e outras medidas no STJ –
entre eles, agravo em recurso especial, ação rescisória, reclamação, agravo interno e pedido de reconsideração.
Após a Primeira Seção do STJ indeferir liminarmente a ação rescisória, a parte entrou com reclamação, sustentando que o colegiado teria usurpado a competência do próprio tribunal. Em decisão monocrática, o relator, ministro Og Fernandes, afirmou que não cabe reclamação dirigida ao STJ contra acórdão proferido por um de seus órgãos jurisdicionais.
"Não faz sentido reconhecer que a Primeira Seção do STJ tenha usurpado sua própria competência para julgamento da ação rescisória", declarou o ministro ao considerar que a reclamação foi usada como sucedâneo de recurso, "o que é inadmissível".
Não satisfeita, a parte recorreu com agravo interno. A seção negou provimento
ao recurso e, em razão da insistência na utilização de um instrumento
processual manifestamente descabido, aplicou a multa prevista no artigo 1.021, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil (CPC), fixada em 1% sobre o valor atualizado da causa.
A
parte, então, apresentou pedido de reconsideração, alegando não ter
condições de pagar a multa processual e insistindo na procedência da reclamação.
No entanto, não há previsão legal ou regimental desse tipo de pedido em
relação a decisão colegiada. "A reiteração de medida judicial
manifestamente descabida caracteriza abuso do direito de ação e autoriza
a certificação imediata do trânsito em julgado da demanda", decidiu Og
Fernandes, que foi acompanhado de forma unânime pela seção.
Reconhecimento do abuso de direito de ação é medida excepcional
No julgamento do REsp 1.770.890, de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a Terceira Turma reafirmou a jurisprudência segundo a qual o reconhecimento de abuso do direito de ação é excepcional,
por estar intimamente atrelado ao acesso à Justiça, devendo ser
analisado com prudência pelo julgador e declarado apenas quando o
desvirtuamento do exercício desse direito for amplamente demonstrado.
O
colegiado afastou a condenação por danos morais de três ex-vereadores
do município Rio do Sul (SC) em razão de ação popular ajuizada por eles
para impugnar a venda de um imóvel pela prefeitura. Os ex-vereadores
haviam sido condenados nas instâncias ordinárias porque teriam utilizado
a ação popular para fins políticos, mas o STJ concluiu que não foram
demonstrados nem o abuso do direito de ação nem o dano moral
indenizável.
De acordo com o relator, a
análise da configuração do abuso deve ser ainda mais minuciosa quando
se tratar da utilização de uma ação constitucional, como é o caso da
ação popular, voltada para a tutela de direitos coletivos e um
importante instrumento para a efetivação da democracia participativa,
pois possibilita a interferência do cidadão na gestão da coisa pública.
O
ministro Villas Bôas Cueva explicou que, mesmo sendo válida a
preocupação do julgador com um eventual uso político da ação popular – o
que significaria desvirtuamento do instituto –, essa análise deve se
pautar pela prudência, "de modo a não coibir o seu uso diante de
possíveis lesões ao patrimônio público e à moralidade pública".
Mandados de injunção idênticos com diferentes pessoas no polo ativo
Para
a Corte Especial, a impetração de vários mandados de injunção, com
diferentes indivíduos no polo ativo, não caracteriza assédio processual.
O colegiado entendeu que, em tal situação, a parte impetrante não deve
ser condenada ao pagamento de indenização ou multa por litigância de
má-fé ou abuso do direito de ação, pois a Constituição Federal autoriza a
impetração de mandado de injunção
sempre que a pessoa considerar que a demora do Estado em editar norma
jurídica a impede de exercer direito assegurado constitucionalmente.
No caso dos autos, um militar entrou com o pedido de mandado de injunção
contra o comandante da Aeronáutica, alegando omissão dessa autoridade
na edição de norma para disciplinar o direito de promoção do Quadro
Especial de Sargentos.
Durante o trâmite do MI 345 no STJ, a União sustentou
a ocorrência de assédio processual, que estaria caracterizado pela
impetração de diversos mandados de injunção desprovidos de fundamentação
idônea e intentados sem nenhum interesse legítimo a ser tutelado. Por
isso, pediu que fosse fixada indenização ou multa contra o impetrante,
por abuso de direito processual e litigância de má-fé.
Ao
proferir sua decisão, o ministro Raul Araújo, relator, observou que o
simples fato de o litigante utilizar ação ou recurso previsto em lei ou –
como no caso – na própria Constituição não significa litigância de
má-fé.
"O fato de terem sido
impetrados vários mandados de injunção idênticos, cada qual com um
indivíduo no polo ativo, não caracteriza, por si só, a litigância de
má-fé. Julgando embargos de declaração
similares aos dos presentes autos, a Corte Especial já teve a
oportunidade de se manifestar, concluindo pela não configuração da
litigância de má-fé e do assédio processual", afirmou.
No AREsp 952.308,
de forma semelhante, a Quarta Turma considerou indevida a aplicação de
multa por litigância de má-fé ou abuso do direito de ação contra a
pessoa que utiliza legitimamente um recurso previsto na legislação
processual civil com o objetivo de esgotar a instância ordinária e
possibilitar a interposição do recurso especial ao STJ.
Nesse
caso, foi ajuizada contra um banco ação declaratória de inexigibilidade
de dívida, cumulada com pedido de indenização por danos morais. A
instituição financeira foi condenada à reparação dos danos pela
inscrição indevida do nome do autor em órgãos de restrição de crédito.
Em embargos de declaração,
o consumidor requereu o aumento da indenização, mas o Tribunal de
Justiça de São Paulo (TJSP), além de rejeitar o pedido, puniu o
embargante com multas, dada a sua insistência em argumentos já
rejeitados.
O relator, ministro Raul Araújo, ressaltou que, como a interposição de agravo interno configura legítimo exercício das garantias do devido processo legal, deve-se afastar não apenas a multa do artigo 1.021, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil, mas também a sanção por litigância de má-fé, pois ambas foram fundadas no mesmo fato (interposição do recurso).
Inversão automática do ônus da prova pode facilitar abuso do direito de ação
Ao julgar o REsp 1.866.232,
a Terceira Turma entendeu que a inversão do ônus probatório a respeito
da veracidade e da correção da informação publicitária, prevista no artigo 38 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), não se aplica a demandas que discutem concorrência desleal.
Nesse
processo, a rede de lanchonetes Burger King buscava fazer com que o
restaurante Madero Steak House, seu concorrente, parasse de veicular
propaganda supostamente enganosa com a frase "o melhor hambúrguer do
mundo". A Burger King alegou que deveria haver inversão do ônus da
prova, ficando seu concorrente responsável pelo custeio da produção da
perícia, pois, embora não houvesse relação de consumo entre as partes, a
aplicação do artigo 38 do CDC era necessária para proteger o consumidor
de práticas abusivas e desleais.
O
relator do recurso no STJ, ministro Paulo de Tarso Sanseverino
(falecido), afirmou que a norma do CDC não poderia ser aplicada nas
relações entre empresas concorrentes, pois poderia facilitar o abuso do
direito de ação, incentivando estratégias anticoncorrenciais, uma vez
que, a partir do ajuizamento de demanda fútil, o ônus da prova estaria
direta e automaticamente imposto ao concorrente com menor porte
econômico.
Em tal hipótese, comentou o ministro, o processo estaria sendo utilizado não para obter um
provimento
jurisdicional, mas, sim, "como meio de dificultar a atividade do
concorrente ou mesmo de barrar a entrada de novos competidores no
mercado".
Fonte - STJ