Ações na Justiça usam lei de calamidade pública para pedir saques do FGTS
Segundo o governo, se todos os trabalhadores puderem resgatar até R$ 6.220 da conta do Fundo, as retiradas podem chegar a R$ 142,9 bi e superar a disponibilidade imediata de recursos
Idiana Tomazelli, O Estado de S.Paulo
22 de maio de 2020 | 05h00
BRASÍLIA - O número crescente de trabalhadores que acionam a Justiça para tentar sacar um valor maior de suas contas do FGTS em meio à crise do novo coronavírus
acendeu o alerta na área econômica para o risco à sustentabilidade do
fundo e para uma eventual necessidade de aporte de recursos pelo Tesouro Nacional, caso haja multiplicação de decisões favoráveis às liberações de um valor maior.

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Os
pedidos são justificados com um decreto de 2004, que prevê a
possibilidade de resgatar até R$ 6.220 da conta vinculada do fundo em
situação de calamidade pública provocada por desastre natural. Com o País em
calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, alguns juízes
estão concedendo autorização imediata do saque alegando a necessidade de
se fazer “interpretação extensiva” do decreto, “com base no princípio
da razoabilidade”.
Se todos os trabalhadores puderem sacar até esse limite, as retiradas do FGTS poderiam chegar a R$ 142,9 bilhões, valor que supera a disponibilidade imediata de recursos do fundo (cerca de R$ 18 bilhões) e também a sua carteira de títulos públicos (cerca de R$ 80 bilhões), que precisariam ser vendidos, possivelmente com prejuízo aos trabalhadores.
A União seria então obrigada a aportar mais de R$ 30 bilhões no FGTS
para garantir todos os compromissos, num momento em que o Tesouro já
tem outras ações de socorro para honrar e encontra dificuldades para se
financiar no mercado. Isso acontece porque os recursos dos trabalhadores
depositados no fundo são fonte de financiamento para obras de
infraestrutura ou até para a compra da casa própria, em operações que
dão rentabilidade ao fundo. O dinheiro não fica lá parado – mas, se
precisar ser sacado, o Tesouro é o “fiador” que garantirá o seu
pagamento.
O valor de aporte seria menor, de R$ 10 bilhões, caso sejam considerados R$ 20 bilhões do Fundo PIS/Pasep transferidos ao FGTS, mas que podem ser resgatados a qualquer momento se houver quem os reclame.
Mérito
O diretor do Departamento de Gestão de Fundos do Ministério da Economia, Gustavo Tillmann, diz ao Estadão/Broadcast que o decreto de 2004 foi feito para situações específicas e locais, não para uma pandemia que é mundial. Além disso, ele ressalta que o valor do saque de até R$ 1.045 autorizado pelo governo na Medida Provisória 946 garante resgate integral para 70%
dos trabalhadores e já foi calculado no limite do esforço possível do
fundo para liberar recursos na crise. Serão aproximadamente R$ 34 bilhões. “Eu entendo o mérito de quem pede, mas não é compatível”, afirma.
“O
dinheiro não está lá. O dinheiro muitas vezes está emprestado para um
trabalhador que tem conta no FGTS. Na carteira de habitação, 80% das
pessoas que pegam crédito com o FGTS são trabalhadores que têm conta no
fundo. Isso exigiria eu cobrar esse pessoal, dizer ‘me devolvam o
dinheiro que eu emprestei para vocês’. É um dilema, é uma situação
difícil”, explica o diretor.
A luz amarela acendeu também porque há iniciativas semelhantes no Congresso Nacional. Um projeto de lei do senador Confúcio Moura (MDB-RO)
quer criar o “saque calamidade pública” para ser acessado por
desempregados que ainda tenham recursos não sacados no fundo de
garantia. Os parlamentares também podem usar a própria MP encaminhada
pelo governo federal para elevar o valor do saque permitido aos
trabalhadores.
“O limite do saque estava em torno de R$ 1 mil. Mais próximo da edição da MP, esticou-se mais um pouquinho para chegar aos R$ 1.045, que é o salário mínimo.
Mas nossa conta já está muito apertada. E ela está apertando a cada
dia, porque a cada dia vêm novas medidas que contam com o FGTS”, alerta
Tillmann.
Situação limite
Antes de liberar o saque, o governo já havia permitido às empresas suspender por 90 dias os recolhimentos ao fundo. Mas a conta da liberação foi feita antes da Medida Provisória 936,
que permitiu redução de jornada e salário ou suspensão de contratos e
que tem como uma das consequências a redução da arrecadação do FGTS.
Haverá ainda aumento dos saques em caso de maior número de demissões sem
justa causa. Segundo o diretor, não há “gordura” para elevar o
valor do saque imediato do fundo na pandemia, nem por decisão da
Justiça, nem por ação do Congresso.
“Estamos cada vez
mais no fio da navalha”, diz. “Os R$ 1.045 foram bem justos. Qualquer
coisa acima disso vai implicar venda de títulos públicos. Essa carteira
geralmente não é vendida. E a venda pode implicar alguma perda, porque
vai ter que vender rápido”, afirma.
Em uma situação ainda mais limite, caso houvesse liberação integral dos R$ 418 bilhões depositados em contas vinculadas, a necessidade de aporte de recursos pelo Tesouro seria superior a R$ 300 bilhões,
o que não é factível, segundo Tillmann. Para ele, o saque integral
determinaria o fim do modelo de política pública de amparo e fomento
baseada no fundo de garantia. O dinheiro do FGTS é usado para fomentar
investimentos em habitação, saneamento e infraestrutura urbana.
O economista Pedro Nery
avalia que hoje quem tem mais dinheiro na conta do FGTS é “quem tem um
emprego que paga mais e alguma estabilidade”. Para ele, elevar o valor
do saque não é uma política bem focalizada. “Mais interessante são os
projetos que destinam o patrimônio líquido, que não pertence a ninguém,
para garantir o pagamento de quem ganha menos”, afirma. O patrimônio líquido do FGTS é formado basicamente por lucros de anos anteriores não distribuídos aos trabalhadores.
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