Exame criminológico e progressão de regime: a jurisprudência do STJ e as inovações da Lei 14.843
Como
saber se uma pessoa em cumprimento de pena tem condições de dar o
próximo passo para retornar ao convívio social? Uma das respostas
trazidas pela legislação brasileira é a realização do exame
criminológico, método previsto pela Lei de Execução Penal (LEP) desde a
sua publicação, em 1984.
Por meio do exame criminológico, uma equipe designada para essa finalidade busca analisar o preso em suas várias dimensões – pessoal, familiar, orgânica e psicológica, entre outras –, traçando um perfil do examinado e dando indicações sobre seu comportamento e as possibilidades de recuperação ou de cometimento de novos delitos. A equipe de avaliação é composta normalmente por profissionais como psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais.
Na seção relativa aos regimes de cumprimento de pena,
o texto original do artigo 112 da LEP definia que, quando fosse
necessário, o juízo poderia solicitar o exame criminológico para decidir
sobre a transferência do preso para regime mais brando (do fechado para
o semiaberto, por exemplo).
O dispositivo, contudo, foi alterado pela Lei 10.792/2003, e passou a estabelecer, sem menção ao exame criminológico, que o preso poderia progredir de regime após o cumprimento de um sexto da pena e com a demonstração de bom comportamento carcerário. Em razão desse novo texto do artigo 112 da LEP, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2010, editou a Súmula 439, segundo a qual o juízo pode exigir a realização do exame criminológico, considerando as peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada.
Alteração legislativa tornou obrigatória a realização do exame
O cenário voltou a ser modificado após a publicação da Lei 14.843/2024 – popularmente conhecida como "Lei das Saidinhas" –, que introduziu o parágrafo 1º no artigo 112 da LEP, segundo o qual, "em todos os casos, o apenado somente terá direito à progressão de regime se ostentar boa conduta carcerária, comprovada pelo diretor do estabelecimento, e pelos resultados do exame criminológico, respeitadas as normas que vedam a progressão".
Diante do novo panorama legal, no RHC 200.670, a Sexta Turma entendeu que a imposição do exame criminológico para todas as hipóteses de progressão de regime constitui uma inovação legislativa em prejuízo do réu (novatio legis in pejus), pois torna mais difícil alcançar regimes prisionais mais próximos da liberdade.
Como
consequência, de acordo com o ministro Sebastião Reis Junior, a
aplicação retroativa da nova redação do artigo 112 da LEP é
inconstitucional, tendo em vista o que estabelece o artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal.
Exame compõe requisito subjetivo para o deferimento da progressão
Para autorizar a progressão de regime, a LEP especifica tanto requisitos objetivos (em especial, o tempo de pena já cumprido) quanto subjetivos (relacionados ao perfil do preso e analisados por métodos como o exame criminológico).
Esses requisitos são cumulativos e, conforme indicou a Sexta Turma no HC 848.737, o resultado desfavorável do exame criminológico justifica o indeferimento do pedido de progressão de regime, devido à falta de preenchimento do requisito subjetivo.
No caso dos autos, o ministro Rogerio Schietti Cruz destacou que o parecer dado no exame criminológico informou que o apenado ainda não havia assimilado adequadamente as razões para aplicação da pena, havendo evidências de que ele não apresentava autodisciplina nem senso de responsabilidade, o que levou a equipe de avaliação a recomendar a manutenção do regime prisional.
Também de acordo com a Sexta Turma, o habeas corpus não é o instrumento adequado para pedir a reanálise do exame criminológico com o objetivo de desconstituir suas conclusões quanto ao não preenchimento do requisito subjetivo para a progressão (HC 624.407).
Justiça não está vinculada ao parecer da equipe técnica
Ainda
que o resultado do exame criminológico seja favorável à pessoa em
cumprimento de pena, o parecer não obriga a Justiça a conceder a
progressão de regime, conforme decidido pela Quinta Turma no HC 889.191, relatado pelo ministro Joel Ilan Paciornik.
Nesse
caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reformou decisão de
primeiro grau que havia deferido a progressão de uma presa ao regime
aberto, por entender que, embora o relatório criminológico fosse
parcialmente favorável, os especialistas indicaram que ela ainda
apresentava uma resposta "rasa" e "precária" sobre assumir a culpa
pelos seus atos. O parecer também apontava dificuldades da mulher em
recuperar os vínculos familiares e reparar a situação vivida na época do
crime.
No mesmo sentido, no HC 853.000, a Quinta Turma concluiu que bastam alguns aspectos negativos do exame criminológico para fundamentar a decisão que indefere a progressão de regime.
Decisão que concede a progressão tem natureza declaratória
Ao julgar o Tema 1.165, a Terceira Seção definiu que, como a decisão que defere a progressão tem natureza declaratória (e não constitutiva), a data de início dos efeitos da progressão de regime é aquela em que foram preenchidos os requisitos objetivo e subjetivo previstos no artigo 112 da LEP.
Para a seção, essa data deve ser a do preenchimento do último requisito pendente – seja ele o objetivo ou o subjetivo.
"Se por último for preenchido o requisito subjetivo, independentemente da anterior implementação do requisito objetivo, será aquele (o subjetivo) o marco para fixação da data-base para efeito de nova progressão de regime", apontou o relator dos recursos repetitivos, desembargador convocado Jesuíno Rissato.
No HC 620.573, a Quinta Turma estabeleceu que, tendo sido determinada a realização da avaliação criminológica, entende-se como preenchido o requisito subjetivo no momento do exame favorável ao interessado. Como consequência, o colegiado fixou esse dia como a data-base para a nova progressão, mesmo que o requisito objetivo tenha sido preenchido em momento anterior.
Cumprimento cumulativo dos requisitos define início dos efeitos da medida
Antes da fixação da tese repetitiva, esse entendimento já havia sido adotado pela Quinta Turma no HC 414.156, em que a defesa do preso alegava que a data inicial para fins de nova progressão deveria ser o dia do cumprimento do requisito objetivo, ou seja, a data em que ele cumpriu o tempo necessário para a progressão – cinco anos antes da decisão que deferiu a transferência para o regime semiaberto.
O relator do habeas corpus, ministro Felix Fischer (aposentado), comentou que a posição do Supremo Tribunal Federal (STF) e do STJ, no sentido de considerar esse marco inicial na data em que são preenchidos os requisitos objetivo e subjetivo, tem como vantagem evitar que o preso seja prejudicado por eventual demora da decisão que declara os requisitos cumpridos.
Por outro lado, o relator apontou que, sendo a progressão condicionada ao preenchimento cumulativo dos requisitos, não seria possível considerar, em todos os casos, a data do cumprimento do requisito objetivo como marco para início da contagem do benefício.
"Ante a determinação de realização de exame criminológico, o requisito subjetivo somente restou implementado no momento da realização do exame favorável ao paciente, razão pela qual deve ser considerado como data-base para nova progressão, mesmo estando o requisito objetivo preenchido em momento anterior", afirmou.
Presença de psiquiatra não é obrigatória para validar exame
Sobre os profissionais habilitados para a realização do exame criminológico, a Quinta Turma definiu, no HC 690.941, que a ausência de médico psiquiatra não invalida a avaliação do preso para fins de progressão ou não de regime.
A defesa sustentava que a falta do especialista teria violado o artigo 7º da LEP, o qual estipula que a Comissão Técnica de Classificação – responsável pela elaboração do laudo criminológico – deve ser composta, no mínimo, por dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social, além do diretor do presídio.
O ministro Ribeiro Dantas,
porém, considerou possível – como ocorreu no caso analisado – que o
exame criminológico seja conduzido apenas por profissional de
psicologia, sendo dispensável a presença de psiquiatra. O ministro
lembrou que o laudo não tem eficácia absoluta, pois é apenas um dos
elementos de prova utilizados pelo juízo ao avaliar a possibilidade de
progressão do preso.
Fonte - STJ
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