Com crise do coronavírus, empresas começam a pedir revisão de contratos na Justiça
Especialistas temem que acordos sejam suspensos em um efeito dominó, sob alegação de 'força maior' ou 'evento fortuito', com impactos em toda a economia
Julliana Martins, Circe Bonatelli, André Vieira e Fernanda Nunes, O Estado de S. Paulo
02 de abril de 2020 | 07h00
SÃO PAULO E RIO - Na terça-feira, 31, a Raízen, empresa de combustíveis da Cosan e da Shell, declarou força maior em relação aos contratos assinados com seus fornecedores, por conta da epidemia do novo coronavírus. Assim, poderia rever os volumes de compra de etanol, originalmente programados. Com a maioria da população em casa, a venda de combustível caiu em até 80% em algumas cidades.
Já o Grupo Autostar, rede de 16 concessionárias de carros importados, como BMW, Land Rover, Volvo, Jeep e Harley-Davidson,
ganhou na Justiça o direito de suspensão do pagamento de aluguéis por
quatro meses. Os valores só serão pagos nos 12 meses seguintes, sem
mora. Em seu despacho, a juíza Flávia Poyares Miranda, do Tribunal de Justiça de São Paulo,
afirmou que "a pandemia mundial acarretou a paralisação de diversas
atividades, causando profundo impacto na vida das pessoas" e classificou
a situação como um caso de "força maior", o que, no seu parecer,
justifica a intervenção do Judiciário.

Os
episódios podem ser os primeiros a virar uma tendência. Com a alegação
de "força maior" ou "evento fortuito" - por conta do coronavírus -, o
meio jurídico teme que os contratos sejam suspensos em um efeito dominó,
com distorções em toda economia. Entrariam aí pagamento de aluguel de
imóveis, distratos de compra e venda de ativos, fornecimento de insumos e
serviços, entrega de obras, entre outros.
O efeito em cadeia, evidentemente, gerou reação imediata dos envolvidos. A União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica),
por exemplo rebateu "veementemente" o rompimento de contratos pela
Raízen. "Do ponto de vista jurídico, as notificações ignoram os
pressupostos legais para a alegação de força maior e pretendem criar uma
verdadeira licença para não pagar", escreveu a Única. "Sob o ponto de
vista econômico, empresas altamente capitalizadas, com farto acesso ao
crédito nacional e internacional, pretendem transferir a elos mais
frágeis as responsabilidades que competem a elas e para as quais se
prepararam nos últimos anos." A entidade disse ainda que, se as usinas
não receberem o previsto, milhares de fornecedores e colaboradores
também não receberiam.
A briga foi parar na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), por meio da Associação de Produtores de Açúcar, Etanol e Bioenergia (Novabio). Os efeitos podem mudar toda a a estrutura do setor e reforça, segundo o presidente da entidade, Renato Cunha,
a necessidade de os produtores poderem comercializar diretamente com os
postos de combustível, sem passar necessariamente pelas distribuidoras.
“Nunca pedimos para excluir as distribuidoras do processo, mas
gostaríamos de pensar na opção de venda direta como um mecanismo
complementar alternativo”, disse.
O
evento fortuito é aquele acontecimento promovido por ato humano, mas de
forma imprevisível e inevitável. Já a força maior decorre de forças
naturais, fora do alcance do homem, mas também imprevisíveis e
inevitáveis. Advogados dizem que não há jurisprudência consolidada
definindo em qual das categorias a covid-19 se enquadra, mas admitem que
o impacto da crise é severo e abre margem para discussão sobre as
obrigações contratuais.
"A rotulação sobre 'evento fortuito' ou
'de força maior' exige uma análise rigorosa e caso a caso. Mas o que
existe, sim, é um efeito da pandemia sobre todos os contratos. É
necessário um primeiro reconhecimento disso, na nossa visão", diz o
advogado Pablo Queiroz, sócio na área de negócios imobiliários de TozziniFreire.
Segundo ele, as renegociações de contratos serão inevitáveis, e essa
demanda já está ocorrendo em segmentos que envolvem locadores e
locatários de imóveis. "A sociedade terá de compartilhar os riscos e
prejuízos. É uma situação inédita", afirma.
Segundo a advogada Maria Helena Bragaglia, especialista em contenciosos e sócia do escritório Demarest,
as decisões dependerão da análise de casos concretos e exigirá boa fé
das partes afetadas. A primeira recomendação de interlocutores do meio
jurídico é respeitar o que está previsto nos contratos e, em caso de
dificuldade, negociar. A potencial caracterização da crise de saúde
pública como "evento fortuito" ou de "força maior" não é automática, nem
generalizada. Supermercados e farmácias, por exemplo, aumentaram as
vendas, enquanto redes de moda e cinemas foram à lona. Ou seja, a crise
afeta cada empresa de um modo diferente, assim como sua capacidade de
cumprir obrigações.
Diante das incertezas, os escritórios já têm
recomendado às empresas a elaboração de dossiês e registros dos fatos a
fim de se resguardar de eventuais discussões. "É provável que a
jurisprudência venha a definir a ocorrência (da pandemia) como situação
imprevisível e excludente de responsabilidade, mas as cautelas jurídicas
são necessárias para minimizar riscos", recomenda o escritório Zavagna e Gralha em boletim aos seus clientes.
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